52ª. A contraposição entre carne e Espírito e a “justificação” na fé – 07/01/1981

1. Que significa a afirmação “A carne… tem desejos contrários ao Espírito, e o Espírito tem desejos contrários à carne”i? Esta pergunta parece importante, mesmo fundamental, no contexto das nossas reflexões sobre a pureza de coração, de que fala o Evangelho. Todavia, o Autor da Epístola aos Gálatas abre diante de nós, a este respeito, horizontes ainda mais vastos. Nesta contraposição da “carne” ao Espírito (Espírito de Deus), e a vida “segundo à carne” à vida “segundo o Espírito”, está contida a teologia paulina acerca da justificação, isto é, a expressão da fé no realismo antropológico e ético da redenção operada por Cristo, que Paulo, no contexto já nosso conhecido, chama também “redenção do corpo”. Segundo a Epístola aos Romanos 8, 23, a “redenção do corpo” tem ainda uma dimensão cósmica (referida a toda a criação), mas no centro dela está o homem: o homem constituído na unidade pessoal do espírito e do corpo. E precisamente neste homem, no seu “coração”, e conseqüentemente em todo o seu comportamento, frutifica a redenção de Cristo, graças àquelas forças do Espírito que operam a “justificação”, isto é, fazem que a justiça “abunde” no homem, como é indicado no Sermão da Montanhaii, isto é, “abunde” na medida que o próprio Deus quis e espera.

2. É significativo que Paulo, falando das “obras da carne”iii, mencione não só “prostituição, impureza, desonestidade… embriaguez, orgias” —portanto, tudo o que, segundo um modo de compreender objetivo, reveste caráter dos “pecados carnais” e do gozo sensual ligado com a carne—, mas nomeie também outros pecados, a que nós seríamos levados a atribuir um caráter também “carnal” e “sensual”: “idolatria, malefícios, inimizades, contendas, iras, rixas, discórdias…”iv. Segundo as nossas categorias antropológicas (e éticas), nós estaríamos propensos antes a chamar todas as “obras” aqui indicadas “pecados do espírito” humano, em vez de pecados da “carne”. Não sem motivo, poderíamos entrever nelas, antes os efeitos da “concupiscência dos olhos” ou da “soberba da vida”, do que os efeitos da “concupiscência da carne”. Todavia, Paulo qualifica-as todas como “obras da carne”. Isto entende-se exclusivamente sobre o fundo daquele significado mais amplo (em certo sentido metonímico), que nas epístolas paulinas assume o termo “carne”, contraposto não só e não tanto ao “espírito” humano, quanto ao Espírito Santo que opera na alma (no espírito) do homem.

3. Existe, portanto, uma analogia significativa entre aquilo que Paulo define como “obras da carne” e as palavras com que explica Cristo aos seus discípulos o que primeiro dissera aos fariseus acerca da “pureza” e da “impureza” ritualv. Segundo as palavras de Cristo, a verdadeira “pureza” (como também a “impureza”) em sentido moral está no “coração” e provém “do coração” humano. Como “obras impuras”, no mesmo sentido, são definidos não só os “adultérios” e as “prostituições”, portanto os “pecados da carne” em sentido estrito, mas também os “propósitos malvados… os furtos, os falsos testemunhos e as blasfêmias”. Cristo, segundo já pudemos verificar, serve-se aqui do significado tanto geral como específico da “impureza” (e, portanto, indiretamente também da “pureza”). São Paulo exprime-se de maneira análoga: as obras “da carne” são entendidas no texto paulino em sentido tanto geral como específico. Todos os pecados são expressão da “vida segundo a carne”, que está em contraste com a “vida segundo o Espírito”. Aquilo que, em conformidade com a nossa convenção lingüística (aliás, parcialmente justificada), é considerado como “pecado da carne”, e, neste sentido, um dos sintomas, isto é, das atualizações da vida “segundo a carne” e não “segundo o Espírito”.

4. As palavras de Paulo escritas aos Romanos —”Assim, pois, irmãos, não somos devedores à carne para que vivamos segundo a carne. Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo espírito, fizerdes morrer as obras da carne, vivereis”vi— introduzem-nos de novo na rica e diferenciada esfera dos significados que os termos “corpo” e “espírito” têm para si. Todavia, o significado definitivo daquele enunciado é paranético, exortatório, portanto válido para o ethos evangélico. Paulo, quando fala da necessidade de fazer morrer as obras do corpo com a ajuda do Espírito, exprime exatamente aquilo de que falou Cristo no Sermão da Montanha, apelando para o coração humano e exortando-o ao domínio dos desejos, mesmo daqueles que se exprimem no “olhar” do homem dirigido para a mulher com o fim de satisfazer a concupiscência da carne. Tal superação, ou seja, como escreve Paulo, o “fazer morrer as obras do corpo com a ajuda do Espírito”, é condição indispensável da “vida segundo o Espírito”, quer dizer, da “vida” que é antítese da “morte” de que se fala no mesmo contexto. A vida “segundo a carne” frutifica, na verdade, a “morte”, isto é, comporta como efeito a “morte” do Espírito.

Portanto, o termo “morte” não significa só morte corporal, mas também o pecado, que a teologia moral chamará mortal. Nas Epístolas aos Romanos e aos Gálatas, alarga continuamente o horizonte do “pecado-morte” seja para o “princípio” da história do homem, seja para o seu termo. E, por isso, depois de catalogar as multiformes “obras da carne”, afirma que “os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus”vii. Noutra passagem, escreverá com semelhante firmeza: “Sabei-o bem, nenhum imoral, impuro ou ávaro —o qual é como um idólatra— terá herança no Reino de Cristo e de Deus”viii. Também neste caso, as obras que excluem de ter “parte no reino de Cristo e de Deus” —isto é, as “obras da carne— “vêm catalogadas como exemplo e com valor geral, embora no primeiro lugar estejam aqui os pecados contra a “pureza” no sentido específicoix.

5. Para completar o quadro da contraposição entre o “corpo” e o “fruto do Espírito”, é necessário observar que em tudo o que é manifestação da vida e do comportamento segundo o Espírito, Paulo vê ao mesmo tempo a manifestação daquela liberdade, para a qual Cristo “nos libertou”x. Assim, precisamente escreve: “Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade, pois toda a Lei se encerra num só preceito: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo'”xi. Como já precedentemente fizemos notar, a contraposição “corpo-Espírito”, vida “segundo a carne” — vida “segundo o Espírito”, penetra profundamente toda a doutrina paulina sobre a justificação. O Apóstolo das Gentes, com excepcional força de convicção, proclama que a justificação do homem se completa em Cristo e por Cristo. O homem consegue a justificação na “fé que opera por meio da caridade”xii, e não só mediante a observância de cada uma das prescrições da Lei vétero-testamentária (em particular, da circuncisão). A justificação vem, portanto, “do Espírito” (de Deus) e não “da carne”. Ele exorta, por isso, os destinatários da sua epístola a libertarem-se da errônea concepção “carnal” da justificação, para seguirem a verdadeira, isto é, a “espiritual”. Neste sentido, exorta-os a considerarem-se livres da Lei, e, ainda mais, a serem livres com a liberdade para a qual Cristo “nos libertou”.

Assim, pois, seguindo o pensamento do Apóstolo, convém-nos considerar e sobretudo realizar a pureza evangélica, isto é, a pureza de coração, segundo a medida daquela liberdade para a qual Cristo “nos libertou”.

iGl 5, 17.

iiMt 5, 20.

iii Cf. Gl 5, 19-21.

ivGl 5, 20-21.

v Cf. Mt 15, 2-20.

viRm 8, 12-13.

viiGl 5, 21.

viiiEf 5, 5.

ix Cf. Ef 5, 3-7.

xGl 5, 1.

xiGl 5, 13-14.

xiiGl 5, 6.