37ª. O adultério segundo Cristo, falsificação do sinal e ruptura da aliança pessoal – 27/08/1980

1. No Sermão da Montanha, disse Cristo: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas: Não vim revogar mas completar”i. Para esclarecer em que consiste este “completar”, passa em seguida a cada um dos mandamentos, referindo-se também àquele que diz: “Não cometerás adultério”. A nossa precedente meditação pretendia mostrar em que modo o conteúdo adequado deste mandamento, querido por Deus, ficou ofuscado por numerosos compromissos na particular legislação de Israel. Os Profetas, que no seu ensinamento denunciam muitas vezes o abandono do verdadeiro Deus-Javé por parte do povo, comparando-o ao “adultério”, põem em realce, do modo mais autêntico, este conteúdo.

Oséias não só com as palavras, mas (quanto parece) também com o procedimento, preocupa-se com revelar-nos que a traição do povo é semelhante à conjugal, melhor, mais ainda, ao adultério praticado como prostituição: “Vai, toma por mulher uma prostituta, e gera filhos de prostituição, porque a nação não cessa de se prostituir, afastando-se do Senhor”ii. O Profeta adverte em si esta ordem e aceita-a como proveniente de Deus-Javé: “O Senhor disse-me: “Vai de novo e ama uma mulher que é amante e assim adultera'”iii. De fato, apesar de Israel ser tão infiel quanto ao seu Deus, como a esposa que “seguia os seus amantes sem pensar sequer em Mim”iv, todavia Javé não cessa de procurar a Sua esposa, não se cansa de esperar a conversão e o regresso dela, confirmando esta atitude com as palavras e com as ações do Profeta: “Naquele dia —diz o Senhor— ela Me chamará: ‘Meu marido’ e já não: ‘Meu senhor’… Então te desposarei para sempre; desposar-te-ei conforme a justiça e o direito, com misericórdia e amor. Desposar-te-ei com fidelidade, e tu conhecerás o Senhor”v. Este apelo instante à conversão da infiel esposa-cônjuge decorre a par e passo com a seguinte ameaça: “Afaste ela da sua face as suas fornicações e os seus adultérios dentre os seus seios, não suceda que eu a despoje, deixando-a nua, e a ponha como no dia em que nasceu”vi.

2. Tal imagem da humilhante nudez do nascimento foi recordada, a Israel-esposa infiel, pelo profeta Ezequiel, e em medida ainda mais avantajada: “… Com desprezo por ti foste exposta no meio do campo, no dia do teu nascimento. Passei junto de ti e vi revolver-te em teu sangue. E disse-te: Vive! Fiz-te crescer como a erva dos campos. Desenvolveste-te e tornaste-te núbil, os teus seios tomaram configuração, alongaram-se teus cabelos. Porém, tu estavas nua. E passando junto de ti, vi que era a tua idade, a idade das paixões. Estendi sobre ti a aba da minha capa e cobri a tua nudez; depois fiz contigo um acordo, ligando-te a mim por juramento —oráculo do Senhor Deus— e tu me pertenceste… Pus um anel no teu nariz, brincos nas orelhas e uma magnífica coroa na tua cabeça. Os teus adornos eram de ouro, de prata; foste vestida de linho fino, de seda e de tecidos bordados a cores… A fama da tua beleza correu através das nações, pois era perfeita esta beleza, graças à magnificência com que te preparei… Mas confiastes em tua beleza, serviste-te da tua reputação para te prostituíres e ofereceste as tuas devassidões a todo aquele que passava… Oh! como o teu coração é devasso! —oráculo do Senhor Deus— para teres procedido como uma atrevida mulher de mau porte, por haveres construído uma colina em cada encruzilhada e um alto lugar à entrada de todas as ruas sem que, ao menos, procurásses um salário como qualquer meretriz! Foste a mulher adúltera que recebe os estranhos em vez do seu marido”vii.

3. A citação é um pouco longa, mas o texto é tão importante que era necessário recordá-lo. A analogia entre o adultério e a idolatria é nele expressa de modo especialmente enérgico e exauriente. O momento similar entre os dois elementos da analogia consiste na aliança acompanhada pelo amor. Deus-Javé conclui pelo amor a aliança com Israel —sem seu mérito; torna-se para ele como o esposo e cônjuge mais afetuoso, mais solícito e mais generoso para com a própria esposa. Por este amor, que desde os alvores da história acompanha o povo eleito, Javé-Esposo recebe em troca numerosas traições: “Os altos lugares” —eis os locais do culto idolátrico, em que é cometido “o adultério” de Israel-esposa. Na análise que estamos aqui desenvolvendo, o essencial é o conceito de adultério, de que Ezequiel se serve. Pode-se dizer, todavia, que o conjunto da situação, em que este conceito foi inserido (no âmbito da analogia), não é típico. Trata-se aqui não tanto de uma escolha mútua, feita pelos esposos, que nasce do amor recíproco, mas da escolha da esposa (isto já desde o momento do seu nascimento), escolha proveniente do amor do esposo, amor que, por parte do esposo mesmo, é ato de pura misericórdia. Em tal sentido se desenha esta escolha: corresponde àquela parte da analogia pela qual é qualificada a aliança de Javé com Israel; todavia, corresponde menos à segunda parte dela, pela qual é qualificada a natureza do matrimônio. Certamente, a mentalidade daquele tempo não era muito sensível a esta realidade —segundo os israelitas, o matrimônio era mais o resultado de uma escolha unilateral, muitas vezes feita pelos pais—, todavia tal situação dificilmente entra no âmbito das nossa concepções.

4. Prescindindo de tal pormenor, é impossível não dar conta que nos textos dos Profetas se nota um significado do adultério diverso daquele que apresenta a tradição legislativa. O adultério é pecado porque constitui a ruptura da aliança pessoal do homem e da mulher. Nos textos legislativos é posta em realce a violação do direito de propriedade e, em primeiro lugar, do direito de propriedade do homem quanto àquela mulher, que foi a sua mulher legal: uma de muitas. Nos textos dos Profetas, o fundo da efetiva e legalizada poligamia não altera o significado ético do adultério. Em muitos textos a monogamia mostra-se a única e justa analogia do monoteísmo entendido segundo as categorias da Aliança, isto é, da fidelidade e entrega ao único e verdadeiro Deus-Javé: Esposo de Israel. O adultério é a antítese daquela relação esponsal, é a antinomia do matrimônio (também como instituição) enquanto o matrimônio monogâmico aplica em si a aliança interpessoal do homem e da mulher, realiza a aliança nascida do amor e acolhida pelas suas respectivas partes exatamente como matrimônio (e, como tal, reconhecido pela sociedade). Este gênero de aliança entre duas pessoas constitui o fundamento daquela união pela qual “o homem… se unirá a sua mulher, e os dois serão uma só carne”viii. No contexto acima mencionado, não se pode dizer que tal unidade corpórea é direito (bilateral) de ambos e, sobretudo, que é o sinal regular da comunhão das pessoas, unidade constituída entre o homem e a mulher na qualidade de cônjuges. O adultério cometido por parte de cada um deles não só é a violação deste direito, que é exclusivo do outro cônjuge, mas ao mesmo tempo é radical falsificação do sinal. Parece que nos oráculos dos Profetas precisamente este aspecto do adultério encontra expressão suficientemente clara.

5. Ao verificar que o adultério é falsificação daquele sinal, que encontra não tanto a sua “normatividade” mas, sobretudo, a sua simples verdade interior no matrimônio —isto é, na convivência do homem e da mulher, que se tornaram cônjuges— então, em certo sentido, referimo-nos de novo às afirmações fundamentais, feitas precedentemente, considerando-as essenciais e importantes para a teologia do corpo, do ponto de vista seja antropológico seja ético. O adultério é “pecado do corpo”. Atesta-o toda a tradição do Antigo Testamento e confirma-o Cristo. A análise comparada das Suas palavras, pronunciadas no Sermão da Montanhaix, como também das diversas enunciações a propósito, contidas nos Evangelhos e nas outras passagens do Novo Testamento, consente-nos estabelecer a razão própria da pecaminosidade do adultério. E é óbvio que determinamos tal razão de pecaminosidade, ou seja do mal moral, fundando-nos no princípio da contraposição perante aquele bem moral que é a fidelidade conjugal, aquele bem que pode ser realizado adequadamente só na relação exclusiva de ambas as partes (isto é, na relação conjugal de um homem com uma mulher). A exigência de tal relação é própria do amor esponsal, cuja estrutura interpessoal (como já fizemos notar) é dirigida pela interior normatividade da “comunhão das pessoas”. É esta exatamente que dá significado essencial à Aliança (quer na relação homem-mulher, como também, por analogia, na relação Javé-Israel). Do adultério, da sua pecaminosidade, do mal moral que ele contém, pode-se julgar com base no princípio da contraposição com o pacto conjugal assim entendido.

6. É necessário ter presente tudo isto quando dizemos que o adultério é “pecado do corpo”. O “corpo” é aqui considerado no laço conceitual com as palavras de Gênesis 2, 24, as quais, de fato, falam do homem e da mulher, que, como marido e mulher, se unem tão intimamente entre si que formam “uma só carne”. O adultério indica o ato mediante o qual um homem e uma mulher, que não são marido e esposa, formam “uma só carne” (isto é, aqueles que não são marido e esposa no sentido da monogamia como foi estabelecida na origem, mas sim no sentido da casuística legal do Antigo Testamento). O “pecado” do corpo pode ser identificado só a respeito da relação das pessoas. Pode-se falar de bem ou de mal moral segundo esta relação torne verdadeira tal “unidade do corpo” e lhe confira ou não o caráter de sinal verídico. Neste caso, podemos então julgar o adultério como pecado, em conformidade com o conteúdo objetivo do ato.

E este é o conteúdo que tem na mente Cristo, quando, no Sermão da Montanha, recorda: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério”. Cristo não se detém, contudo, em tal perspectiva do problema.

iMt 5, 17.

iiOs 1, 2.

iiiOs 3, 1.

ivOs 2, 15.

vOs 2, 18.21-22.

viOs 2, 4-5.

viiEz 16, 5-8.12-15.30-32.

viiiGn 2, 24.

ixMt 5, 27-28.